Carta aos estudantes de Direito

sábado, 26 de julho de 2014
Por Alexandre Kawakami*

Prezado Colega,

Vou lhe dizer algumas coisas que nunca me disseram quando estudava Direito, e que gostaria hoje de ter ouvido. Peço que ouça com atenção, pois minhas intenções são boas e não é todo dia que te dizem o que vou te dizer, com a sinceridade que o farei.
Direito é um curso que muitos escolhem quando não sabem o que querem fazer da vida. Isso é uma máxima que ouvi várias vezes durante meu curso. Mas vou te contar um segredo: aos 18 anos de idade, ninguém sabe ao certo o que quer fazer. O que se sabe aos 18 é que é preciso fazer algo que lhe garanta um salário e que lhe dê certa satisfação profissional.

Assim, é bem possível que você, que está fazendo Direito, tenha escolhido esta carreira porque ela lhe propicia várias possibilidades de ter um salário. Vários são os concursos em que o diploma é exigido, ou pelo menos o conhecimento de seus temas. Talvez você seja também um idealista e queira se tornar juiz ou promotor, almejando distribuir justiça aos mais necessitados e punição aos mais fortes. De qualquer forma, na pior das hipóteses, você pode advogar enquanto não passa no concurso. Não é isso que passa pela sua cabeça? Passou pela minha.

Pois bem, eu proponho que considere isso: almeje ser, logo de início e de forma convicta, um advogado.



Em primeiro lugar, saiba que financeiramente você será bem recompensado. Sim, você trabalhará mais do que seus colegas que fizeram concurso. E sim, você provavelmente vai ganhar menos do que seus colegas concursados no início. Mas se você perseverar, com algum tempo, a relação se inverte. Especialmente se você for corajoso a ponto de abrir seu próprio escritório. Mas, o mais importante, no aspecto financeiro, é o fato de que os seus rendimentos vão depender da sua capacidade de trabalho, e não de um decreto de uma autoridade pública. Lembre-se: basta continuarmos nessa tendência inflacionária e termos um aperto de orçamento público para vermos os salários dos funcionários públicos se erodirem.

Entretanto, se o aspecto financeiro é menos importante para você, ou pelo menos insuficiente, existe outro incentivo bem maior que você deve levar em consideração.

Analisando as funções da Justiça e do Estado e seus agentes, existe uma realidade que muitas vezes deixamos de vislumbrar, até mesmo porque ela é aterradora. Um promotor tem incentivos para buscar uma pena maior para o acusado, bem como enquadrar uma mesma ação em vários tipos de crime porque, em sua negociação entre o juiz e o advogado, ele tem mais chances de ser exitoso se agir desta forma. O mesmo ocorre com o fiscal da Receita ou do Ministério do Trabalho. Ou com o policial.

Todos esses podem perfeitamente ter boas intenções no exercício de suas funções. Ou não. Podem, por exemplo, estar à busca de prejudicar um indivíduo em específico. Podem estar à busca de validar um exercício de poder que não é necessariamente legítimo, ainda que legal.

Além destes, também o legislador tem incentivos para criar mais leis que enquadrem mais ações como ilegais ou criminosas. Tem também incentivos para limitar direitos básicos como o de expressão, o de associação, o de representação política, o de propriedade e outras garantias constitucionais. Tem incentivos para criar nova tributação. Tem incentivos para até mesmo, em alguns casos, restringir o direito à vida.

Um bandido que comete um assalto, um sonegador de impostos ocasionam impacto na vida de um número limitado de pessoas. Já as ações dos atores acima têm impacto definitivo em número enorme de pessoas: por natureza, uma lei e uma decisão judicial vinculam a todos.

Em nosso ordenamento jurídico moderno, apenas um ator tem a função, a autonomia e o dever de iniciar a busca da restrição das ações dos atores acima dentro de um quadro constitucional. Esse ator é o advogado.

Em momento algum na história de nossa nação, em momento algum na história de nossa civilização, tal papel teve tanta importância. Na construção de nossa incipiente democracia, vivemos num ambiente onde a punição é seletiva. Onde a censura se disfarça de direito. Onde o trabalho dos cidadãos se esvanece no furor distributivo de quem desconhece ou ativamente ignora o esforço despendido. Onde o sistema de representação é estruturado para a segregação do poder ao invés da fidelidade do mandato. Onde, a níveis mundiais, o direito à privacidade e à intimidade é ameaçado. Onde o Grande Irmão é maior e mais poderoso, autoritário e faminto do que os piores pesadelos de todas as gerações passadas.

Neste cenário de exacerbação de poderes tão intensa, nós, cidadãos de democracias modernas, só temos como alternativa para a defesa do que somos nossas garantias constitucionais. E tais garantias são conhecidas, levantadas e consolidadas pelo advogado.

Mesmo quando defende um cliente que sabe ser culpado de um crime, o advogado, em sua atuação, não está apenas falando por aquele cliente em específico: ele está falando por todo um conjunto anônimo de cidadãos que precisa que lhe sejam garantidos a aplicação de uma pena que não é errônea, ou excessiva, ou abusiva, ou má-intencionada, ou autoritária. O advogado questiona se este sistema atende aos fins a que se propõe. O advogado contrapõe as boas intenções de quem escreve e aplica uma lei à realidade objetiva do nosso cotidiano. E de boas intenções, como se sabe, o capeta se alimenta...

Foram advogados que construíram a abolição da escravidão. Foram advogados que ocasionaram o sucesso do movimento dos direitos civis norte-americanos. E talvez, de forma mais importante, quando omitem-se os advogados é que os autoritários pervertem as democracias.

Seja um advogado. Num sistema imerso em desilusão, descrédito e sarcasmo, seja a voz de seu cliente, quando ninguém mais ousa ouvi-la. Num mundo afogando nas correntes do paternalismo mal-intencionado, seja a luz da autonomia, seja o bastião da liberdade. 

Seja, com orgulho, um advogado.
*Alexandre Kawakami é Mestre em Direito Econômico Internacional pela Universidade Nacional de Chiba, Japão. Agraciado com o Prêmio Friedrich Hayek de Ensaios da Mont Pelerin Society, em Tóquio, por pesquisa no tema Escolhas Públicas e Livre Comércio. É advogado e consultor em Finanças Corporativas.
Fonte:  Revista DomTotal

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